domingo, 3 de julho de 2011

Queen of the railway


Ela está sentada perto do mar
como antigamente,
seus olhos são duas ilhas silenciadas,
há mais do que talvez possa saber
nesse olhar sem data, vindo de percorrer estradas
sua mochila verde empoeirada repousando na areia
seu casaco e seu chapéu desbotado
não dirão jamais quem ela é.
Nuvens em forma de cavalos saltam sobre montanhas
enquanto a lua cravejada de estrelas
eleva-se gotejando mar.
Uma longa faixa cinza ondulante some na distância,
o retrato dela mesma numa casa
nunca retornada, cidades, praças bucólicas penduradas no tempo,
avenidas entrelaçadas a bares, canções, luzes,
fogueiras em praias selvagens,
seu violão viajante, mais amável do que muito companheiro,
mais companheiro que qualquer amante,
toca uma canção sem fim, as árvores sabem seu nome
cachoeiras cantam suas lendas, houve um tempo
em que uma menina olhava o mar
com seus silêncios interiores movendo cores, sonhos, mundos
ela era calma e clara como as manhãs azuis,
seus cabelos cresceram como seus horizontes
há uma voz maior do que qualquer voz de fora,
indizivelmente única, uma noite
as janelas amanheceram diferentes,abertas para um novo sol
as ruas nunca mais as mesmas
os rumos sempre mais e muitos
o tempo, o tempo que se vive
é uma nota numa canção maior,
encontre a nota que preenche sua vida
e estará compondo uma parte da eternidade
naturalmente...
Imagens de acampamentos, rios, viagens, rodeiam-na,
Motocicletas cortando estradinhas ermas de terra
levantando nuvens vermelhas de pó
entre milharais e estrelas
onde fazendas com varandas brancas de madeira
recebem o sol poente tranquilamente,
crianças pescando em riozinhos calmos antes que o tempo
as pesque, ela segue
adentrando cidades e deixando-as
sem tristeza, ou sem tristeza que não se atenue
andando, escrevendo
sua história no vento
solidão é não saber estar consigo a cada momento.
Montanhas caminham para o mar em seus olhos
as ruas movem-se em silencio, os portos
estão vertendo barcos que não voltam mais
nesse momento alguém está nascendo e
percorrerá a estrada do tempo, enquanto
alguém está morrendo, a diferença, nenhuma,
a não ser o movimento entre esses dois momentos,
o que se chama de vida, a ser preenchida
com tudo o que se pode ser.
Ela está anotando em seu caderno o poema do mundo
Sentada olhando o mar
vê os carros correndo com seus faróis incansáveis
as sombras dos morros descerem sobre a rodovia ainda quente
pessoas em seus nomes provisórios voltando para casa lentamente
a fumaça que sobe sobre os telhados vermelhos, café
de fim de dia sobre mesas nostálgicas,
vê o filho que nunca teve nadando nas ondas brancas
correndo atrás de pássaros fugidios na praia das eternidades sobrepostas
todas as mães que sempre teve estão agora orando juntas por ela
como se estivessem de mãos dadas
invisivelmente
em algum lugar desse mundo ou de outros
doces senhorinhas simpáticas e acolhedoras que mesmo sem compreende-la
deram-lhe cama, comida, banho, e o eventual calor
de algum filho apaixonado, que, ficou também pelo caminho.
  como tudo,afinal, fica,
vê intrincados desenhos de estrelas, faróis longe longe longe
nunca alcançados, rios, de rumos e de gente,
o longo longo longo poema do mundo e seus pensamentos.
ela sobe a encosta onde antigos místicos imemoriais
meditaram durante séculos até transformarem-se na pedra
sobre a qual sentaram-se
e vê o tempo modelando seus trajetos invencíveis,
dando forma a topos de montanhas, oceanos, penhascos,
cobrindo gerações sem que sequer percebam
ou possam fazer algo além de olhar o céu da noite
e espantarem-se.
ela olha o mar, profundamente
enquanto seus dedos suaves deslizam nas cordas do violão e escuta a melodia que há em volta, em tudo,
no vento, e é irônico pensar
que há destinos cujo destino é ter destino algum
a não ser, percorrer-se, apenas,
não estar ligado a nada em especial e
a tudo, intrinsecamente,
seu perfil de estradeira silhuetado no alto de uma montanha
ao por do sol, olhando o mundo, ouvindo
a flauta do silencio incomensurável dos tempos,
sabendo, que tudo o que se pode saber
é só o que se vive, por inteiro,
a fogueira crepitando no inverno, um poema
escrito na areia, um livro achado num acostamento,
ou roubado num sebo, a sopa deliciosamente solitária,
a vida, perigosamente livre, não por amor ao perigo,
mas amor à vida, o único casamento: consigo,
sem vasinhos de crisântemos na janela, geladeiras cheias, domingos
pré-fabricados para ninar sonhos alheios.
Ela é uma visão doce e misteriosa numa esquina na poeira
com seus cabelos e caminhos soltos no vento
pessoas a vêem por um momento
e não sabem dizer de onde vem nem para onde vai
saltando clandestinamente
num dia de suas vidinhas corriqueiras,
em suas cidades apascentadas e ocas,
de carrocerias de caminhões
em postos de gasolina
com sua sombra aventureira e olhar enigmático flamejante
vindo de perscrutar os desvãos do tempo
onde ninguém a encontra duas vezes
Ela é louca e linda e vive como o vento
e é só uma mulher na estrada
onde você provavelmente morreria de medo
sem os seus contatos, rotinas, certezas,
sua pele é macia sob a poeira, seus olhos,
claros olhos marinhos cheios de calmarias e tempestades
seu toque é como a brisa dos campos onde só ela esteve,
fugidia como as cores da alvorada
ela passa
rainha andarilha das estradas, belo fantasma indelével
com sua longa túnica de cabelos dourados contra o vento
nua sob a lua das praias desertas,
ela dança com seus anéis, colares tilintantes, lugares
dirão que a viram de passagem, homens
que a amaram sonharão seu retorno, é tarde,
enquanto a noite recolhe a humanidade
e as sombras se tornam só uma
em algum lugar, ao longe,
ela olha o mar,
serenamente
e toca seu violão e toca a lua



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