sábado, 16 de julho de 2011

God is dead

Onde os deuses jogam cartas
sobre a humanidade
desinteressadamente...
As migalhas que caem
de suas mesas inalcançáveis
são os nossos dias...
Onde os nomes nada dizem de eterno...
Apenas
o vazio
do silencio
em resposta
à minuscúla voz humana
clamando no deserto
do tempo
na areia
da ampulheta dos séculos
escorrendo dos olhos ásperos...

domingo, 3 de julho de 2011

Queen of the railway


Ela está sentada perto do mar
como antigamente,
seus olhos são duas ilhas silenciadas,
há mais do que talvez possa saber
nesse olhar sem data, vindo de percorrer estradas
sua mochila verde empoeirada repousando na areia
seu casaco e seu chapéu desbotado
não dirão jamais quem ela é.
Nuvens em forma de cavalos saltam sobre montanhas
enquanto a lua cravejada de estrelas
eleva-se gotejando mar.
Uma longa faixa cinza ondulante some na distância,
o retrato dela mesma numa casa
nunca retornada, cidades, praças bucólicas penduradas no tempo,
avenidas entrelaçadas a bares, canções, luzes,
fogueiras em praias selvagens,
seu violão viajante, mais amável do que muito companheiro,
mais companheiro que qualquer amante,
toca uma canção sem fim, as árvores sabem seu nome
cachoeiras cantam suas lendas, houve um tempo
em que uma menina olhava o mar
com seus silêncios interiores movendo cores, sonhos, mundos
ela era calma e clara como as manhãs azuis,
seus cabelos cresceram como seus horizontes
há uma voz maior do que qualquer voz de fora,
indizivelmente única, uma noite
as janelas amanheceram diferentes,abertas para um novo sol
as ruas nunca mais as mesmas
os rumos sempre mais e muitos
o tempo, o tempo que se vive
é uma nota numa canção maior,
encontre a nota que preenche sua vida
e estará compondo uma parte da eternidade
naturalmente...
Imagens de acampamentos, rios, viagens, rodeiam-na,
Motocicletas cortando estradinhas ermas de terra
levantando nuvens vermelhas de pó
entre milharais e estrelas
onde fazendas com varandas brancas de madeira
recebem o sol poente tranquilamente,
crianças pescando em riozinhos calmos antes que o tempo
as pesque, ela segue
adentrando cidades e deixando-as
sem tristeza, ou sem tristeza que não se atenue
andando, escrevendo
sua história no vento
solidão é não saber estar consigo a cada momento.
Montanhas caminham para o mar em seus olhos
as ruas movem-se em silencio, os portos
estão vertendo barcos que não voltam mais
nesse momento alguém está nascendo e
percorrerá a estrada do tempo, enquanto
alguém está morrendo, a diferença, nenhuma,
a não ser o movimento entre esses dois momentos,
o que se chama de vida, a ser preenchida
com tudo o que se pode ser.
Ela está anotando em seu caderno o poema do mundo
Sentada olhando o mar
vê os carros correndo com seus faróis incansáveis
as sombras dos morros descerem sobre a rodovia ainda quente
pessoas em seus nomes provisórios voltando para casa lentamente
a fumaça que sobe sobre os telhados vermelhos, café
de fim de dia sobre mesas nostálgicas,
vê o filho que nunca teve nadando nas ondas brancas
correndo atrás de pássaros fugidios na praia das eternidades sobrepostas
todas as mães que sempre teve estão agora orando juntas por ela
como se estivessem de mãos dadas
invisivelmente
em algum lugar desse mundo ou de outros
doces senhorinhas simpáticas e acolhedoras que mesmo sem compreende-la
deram-lhe cama, comida, banho, e o eventual calor
de algum filho apaixonado, que, ficou também pelo caminho.
  como tudo,afinal, fica,
vê intrincados desenhos de estrelas, faróis longe longe longe
nunca alcançados, rios, de rumos e de gente,
o longo longo longo poema do mundo e seus pensamentos.
ela sobe a encosta onde antigos místicos imemoriais
meditaram durante séculos até transformarem-se na pedra
sobre a qual sentaram-se
e vê o tempo modelando seus trajetos invencíveis,
dando forma a topos de montanhas, oceanos, penhascos,
cobrindo gerações sem que sequer percebam
ou possam fazer algo além de olhar o céu da noite
e espantarem-se.
ela olha o mar, profundamente
enquanto seus dedos suaves deslizam nas cordas do violão e escuta a melodia que há em volta, em tudo,
no vento, e é irônico pensar
que há destinos cujo destino é ter destino algum
a não ser, percorrer-se, apenas,
não estar ligado a nada em especial e
a tudo, intrinsecamente,
seu perfil de estradeira silhuetado no alto de uma montanha
ao por do sol, olhando o mundo, ouvindo
a flauta do silencio incomensurável dos tempos,
sabendo, que tudo o que se pode saber
é só o que se vive, por inteiro,
a fogueira crepitando no inverno, um poema
escrito na areia, um livro achado num acostamento,
ou roubado num sebo, a sopa deliciosamente solitária,
a vida, perigosamente livre, não por amor ao perigo,
mas amor à vida, o único casamento: consigo,
sem vasinhos de crisântemos na janela, geladeiras cheias, domingos
pré-fabricados para ninar sonhos alheios.
Ela é uma visão doce e misteriosa numa esquina na poeira
com seus cabelos e caminhos soltos no vento
pessoas a vêem por um momento
e não sabem dizer de onde vem nem para onde vai
saltando clandestinamente
num dia de suas vidinhas corriqueiras,
em suas cidades apascentadas e ocas,
de carrocerias de caminhões
em postos de gasolina
com sua sombra aventureira e olhar enigmático flamejante
vindo de perscrutar os desvãos do tempo
onde ninguém a encontra duas vezes
Ela é louca e linda e vive como o vento
e é só uma mulher na estrada
onde você provavelmente morreria de medo
sem os seus contatos, rotinas, certezas,
sua pele é macia sob a poeira, seus olhos,
claros olhos marinhos cheios de calmarias e tempestades
seu toque é como a brisa dos campos onde só ela esteve,
fugidia como as cores da alvorada
ela passa
rainha andarilha das estradas, belo fantasma indelével
com sua longa túnica de cabelos dourados contra o vento
nua sob a lua das praias desertas,
ela dança com seus anéis, colares tilintantes, lugares
dirão que a viram de passagem, homens
que a amaram sonharão seu retorno, é tarde,
enquanto a noite recolhe a humanidade
e as sombras se tornam só uma
em algum lugar, ao longe,
ela olha o mar,
serenamente
e toca seu violão e toca a lua



sábado, 2 de julho de 2011

O último blues da estrada

                                         

  O último blues da estrada

É uma longa noite de outono,
as estrelas estão todas geladas e muito nítidas
no vento
fundo
Começo a ouvir já o último blues da estrada
vindo de longe
entre as luzes amarelas dos postes
e os barcos silenciosos no cais.
Há uma chuva fina num país distante
há uma revolução em curso
há um aniversário,
alguém anda sem rumo,
passam filmes num silencio de caminhada,
cidades secam em calendários
de paredes de bares
nunca mais visitados
os caminhos somem.
Sentar-se num banco de pedra
 e contar a história do mundo
ou, a história de um mundo,
seu mundo, vivido e sonhado
ao mesmo tempo.
Começo a ouvir agora o último blues da estrada
como se eu mesmo o estivesse tocando
na velha gaita do tempo.
E o tenho tocado,
Ahh!!como o tenho tocado por esses anos todos,
este, que é sempre o primeiro e o último
blues da estrada,
que é a voz rouca na noite
à deriva entre estrelas,
que é o caminhar das horas rangendo nos sapatos,
nas pilastras de ferro das pontes,
nas páginas roídas dos livros de uma biblioteca na lua.
Agora
os lares estão em paz na noite
os travesseiros todos apascentados
digam notícias reais
as cidades dormem lado a lado
todos continuam cavando a terra
com absoluta certeza
ninguém tem certeza de nada.
Agora é uma noite de outono em que não há mais nome para nada
Uma estrela passa infinitamente na janela
alguém acaba de acender uma fogueira
no fundo da noite universal.
Ouço já o velho último blues da estrada
no violão cego faltando cordas
nos motores que se afastam na poeira
resvalando em velhas árvores
em praças de museus
em domingos de praias vazias e distantes
nos incansáveis rios viajantes
nos bancos de rodoviárias indiferentes
misturado as vozes das ruas,
ao correr dos trens
ao ruído das estrelas.
As canções são todas uma só canção
vária é a maneira de ouvi-la
Deixemos que os dias contem os dias
sem deixar pegadas.
Há uma ilha sumindo
um poema sendo escrito
um pensamento sentado na ponta de um porto
os trens continuam cavando
há uma vida em andamento
nos limites do insondável
as casas estão todas sóbrias
neste momento
neste momento matou-se alguém
alguém nasceu
anoiteceu
numa cidade
uma caneta escreveu um verso
ouviu-se um nome na escuridão
funda  funda funda...
uma viagem terminou
uma carta pousou numa mesa
o mar ecoou
Ouço agora já o último blues da estrada
de passagem por uma rua
ao olhar por uma porta entreaberta enquanto caminho
num tilintar de copos num balcão
na melancólica atmosfera dos postos de gasolina
poeirentos solos andados e deixados.
As estações de trem foram todas transformadas
em rodoviárias
uma mulher de repente saltou na memória
uma bela mulher
numa paisagem de inverno, num postal perdido
ela talvez não tão perdida ainda
para si mesma
É preciso tocar, é preciso cantar
mas cantem baixo, toquem baixo
está para nascer um santo
está para apagar-se um sol
está para ser escrito um livro
o grande livro da eternidade
cada vida é um capítulo
Silêncio
Agora
longos caminhões sonâmbulos cruzam madrugadas selvagens
uma cabana na floresta medita
um homem encontra a dúvida
num corredor vazio
uma civilização vem à tona, esta,
ouve-se um disparo numa casa antiga
um choro de recém-nascido numa aldeia
da Índia
prédios continuam galgando o céu cada vez mais alto
É noite e estou a caminho de casa
não há casa
É noite e estou a caminho de nada
ouço já o último blues da estrada
rolando na poeira
entre cadeiras quebradas no pátio
de escolas abandonadas
na grama seca de parques de diversões desativados
nas rodas das bicicletas correndo
à margem de um rio
nas sombras das bicicletas projetadas na água
correndo
na silhueta das cidades ao pôr-do-sol
no paletó cansado do andarilho
no olhar sem tempo do soldado
Cantem, toquem
mas com cuidado
não acordem as pedras das igrejas
as torres vigilantes do passado
a criança no relvado envolta em céu azul
os ninhos dos pássaros
não acordem as árvores
elas não querem ser mais acordadas
nesse mundo sem aves
Escrevam a verdade nos punhos das camisas
Inventem jornais sem palavras
só com os olhos
Está para nascer um planeta
está para morrer um santo
numa curva de estrada, num hotel sem data
escrevi uma carta
e deixei-a no vento
para que pudesse lê-la sempre enquanto viajava
e o quanto viajava!!
Assim é
que acontecem as coisas...
olhando o mar
No outro lado do globo agora
um camponês adormece com seu arado
sob uma lua caleidoscópica
um navio atraca mansamente numa nuvem
multidões comemoram algo
absolutamente longínquo
um solitário no alto de uma montanha
ora
vejo seu rosto como o rosto da própria montanha
De acordo com o calendário
estou vivendo na primeira década do século XXI
É preciso dar nome para tudo
só há camas vazias no mapa
e quem escreverá as novas cartas
do alvorecer?
Os músicos estão afinando os instrumentos
antes do naufrágio
e tocarão até o fim
os guarda-chuvas estão a postos
as cidades continuam cavando
a estátuas estão sérias e polidas
as pessoas estão céticas e polidas
Nenhum sinal de insurreição
neste momento
os domingos estão plácidos em frente às TVs
as crianças estão limpas
os relógios funcionando normalmente
as ruas estão sob controle
até os cavalos estão obedecendo
menos o sol
os itinerários todos estabelecidos previamente
o sol está se pondo...
as vírgulas corretamente postadas
o sol se pôs...
Atravessei uma estrada comprida e reta
em direção ao infinito ou, pelo menos, tive a ilusão de estar atravessando
uma estrada comprida e reta e sem fim
todo o tempo
Aparentemente
não estou sonhando
tenho estado estonteantemente vivo
tenho andado estonteantemente
tudo
não é preciso lutar com palavras
não há necessidade de vencedores de qualquer tipo
os heróis estão esquecidos
nas estantes
 ou estampados em camisas
seus ossos são flautas onde o tempo
toca ironicamente
perguntando
o que ninguém responde
Não há o que responder
suficientemente
Agora
Numa clareira de floresta
Uma árvore tomba, mais uma
Um novo míssil é testado com sucesso
e a notícia maior é que agora
novamente podemos ser explodidos com sucesso
um silêncio se instala num prato vazio, mais um
Pedaços de céu azul ainda se agarram
às pontas dos olhos, de alguns.
Em cada útero onde um coração inicia
em cada túmulo onde uma saudade se inclina
com um ramo de lágrima
em cada lugar remoto
onde uma canção não finda
no coração subterrâneo do mundo
onde rios, árvores, montanhas
se recolhem em silêncio definitivo...
Até que se inventem novas sondas mais profundas.
Quem virará as ampulhetas
Quando for o tempo?!
Olhos desfazem-se em areia
Os longos remos dos braços secam-se
Barcos estão vazios, descalços no largo.
As vastas avenidas entrelaçadas em teias
balançam desajeitadamente
sob o peso acumulado das moscas capturadas
os estômagos estão congestionados
os céus estão congestionados
as entranhas da terra estão congestionadas
as escadarias formigam
Passa entre cascos enferrujados de navios
o último blues da estrada
deslizando
asperamente em paredes descascadas
cheias de cartazes políticos pichados
em calçadas interioranas
pacatas
em diários de adolescentes apaixonadas
por viajantes vagabundos
errantes corações no mundo
nos degraus de lúgubres catedrais
porta-séculos
na poça d’água da rua numa noite sem lua
enquanto caminho com um chapéu de silêncio
inauguram-se novos monumentos
ao passado
festejam-se velhos mártires inventados
inventam-se novos santos
Enfastiam-se
uns aos outros
decoram-se sorrisos em salas de aulas
brindam-se aos mortos solenemente
esquecidos quando vivos.
Parado, numa sombra de árvore
o tempo olha calado, o tempo já não compete com as rodovias
o cheiro de café é só mais um no ar
a música que toca dura um segundo
na memória
flores são catalogadas em volumes inodoros
borboletas são fechadas em livros que ninguém abre
os pássaros todos enumerados e anilhados
vidas são insipidamente vividas
pensamentos anilhados
almas comendo do alpiste do dia-a-dia
empoleiram-se tranqüilas nos travesseiros
de suas próprias penas
e dormem serenas e vazias.
Ouço agora o último blues da estrada
que sou eu parado numa porta aberta
e do outro lado, nada
que sou eu andando, andando, andando
invisivelmente andando
sob o ardente sol numa tarde, numa manhã
do lado de fora de tudo
respingando nomes provisórios na fronte
e na frente todos os discursos, os sinos
todos os portões, todas as ruas, todos os automóveis polidos
todas as horas em seu curso,
todas as vidas etiquetadas e distribuídas
ineficazmente,
todas as senhoras sentadas na primeira fila
das igrejas, vigilantes, todos os velhos jogando dama
com peças gastas que são todos os anos de suas vidas
numa praça com folhas caindo outonalmente,
todas as jovens casadas com maridos ideais, iguais iguais, de gesso
todas as bíblias comidas com avidez, mas mal digeridas, e
um telefone em cada bolso e um feriado para cada mágoa e um carnaval
para cada gosto e todas as luzes acesas na hora certa,
e todos os homens ligados e desligados na hora certa
e em turnos e tudo
e tudo...
Escrevo inevitavelmente agora
como se nunca fosse parar
como quando andava como se nunca fosse parar
mas paro,
olho, silencio...
é uma noite de outono
larga, longa e fria noite nítida
em que um homem sobe ao topo de uma montanha
e não se torna mais alto
e tem absoluta consciência de não se tornar mais alto
mas , único.
Não há nomes para assinar na eternidade
não há horizontes mais para andar
além dos que há em mim tão vastos, tão contrários
aos caminhos do mundo que percorri
sim, nada temos em comum!
As cidades continuam cavando
cidades
e mesmo estando completamente estendida
a minha frente
como eu a vejo
a estrada de repente se volta e gira
numa curva completa e se lança
para dentro do corpo através dos meus olhos
inteiramente abertos
e passam a existir apenas em mim
os caminhos que ainda não percorri
e desmistifico-me.