...Mas sempre viajei... Tenho a sensação
estranha de estar viajando desde sempre, há séculos, de ter sido um viajante
qualquer numa época em que as viagens eram feitas a pé e duravam anos e ninguém
sabia para onde. A figura do vagabundo errante, clássica, mítica, caminhando
calmamente através das épocas e cidades com sua roupa puída e heróica,
verdadeiro revolucionário do abandono, da renúncia, de tudo e de si mesmo e de
qualquer perspectiva de qualquer coisa, o anti-herói, na verdade, o desleixado e desinteressado ( e quase sempre
bêbado ) caminhante noturno que às vezes esbarra sua aparição cinzenta e cética
nos ombros dos paletós tensos de sujeitos que passam longamente prá lá e prá cá
pelas calçadas irregulares durante dez, vinte, trinta anos de suas vidas e sem
saber realmente para quê, e só conhecem nada mais do que essas velhas calçadas
cansadas quando olham para a frente e vêem apenas uma cidade esburacada
crescendo sob seus pés para todas as direções, enquanto os cabelos vão
debandando uma a um, fielmente. Talvez eu tenha sido mesmo um vagabundo de 1940
com uma miraculosa garrafa de vinho que nunca seca, um cigarro pisoteado e um
sobretudo amarrotado e que foi visto perambulando sem nome em domingos lentos e
chuvosos de inverno trinta anos depois em Buenos Aires e em Lima e em Istambul
e em um porto fantástico no pacífico e encostado suspeitosamente numa parede de
bar na Lapa, e trinta anos depois numa estradinha de terra de qualquer lugar
com uma mochila de lona verde e um caminhar sem pressa e sonolento e será visto
ainda daqui a trinta anos adentrando cidades com sua capa inconfundível de
poeira e sua aura de náufrago do tempo, perdido aventureiro obscuro
andarilhando desde as Montanhas-Budas-gigantescos-de-pedra do Nepal até as
entranhas sórdidas de cimento e lata de uma metrópole sulamericana passando
através de velhas cidadezinhas descoloridas e pálidas e desenrolando atrás de
sí seu interminável carretel de histórias e estradas. Um vagabundo original
nunca repete as cidades por onde passa e num país desse tamanho você pode andar
por uns vinte anos sem nunca precisar passar mesmo por um lugar duas vezes- e
depois- quando isso acontece você já nem lembra mais (e daí?!) e talvez até
pare no mesmo balcão de um bar antigo e peça outra dose para esquentar os
músculos para uma caminhada longa de um dia frio. Ratos estradeiros se
multiplicam todos os anos e ninguém sabe dizer de onde eles surgem, bandos
inteiros de barbudos com pálpebras vermelhas e olhar caído e mole de cão
sabujo, vestidos com velhas gandolas desbotadas e botinas come-léguas apontando
silenciosas para o poente. E não há como desviar deles nas ruas, você sabe, não
há, e baterão em sua porta pedindo algo prá comer – Tem pão? – e o vagabundo
pára no meio do nada e com ar solene e vasto e rosto cheio de sol ou de chuva,
avalia a distância, respira fundo o silêncio, procura talvez um cigarro nos mil
bolsos furados e caminha para seu destino que não é nem mesmo destino algum e
ele sabe e toca seu passo rumo ao próximo qualquer coisa que esteja lá à
frente. Certeza?! Não, nenhuma, só a das
horas fuzilando gente. E, depois, que um homem passe sua vida preferindo andar
sem rumo deveria ser algo menos estranho e perigoso de que escolher passar uma
vida sem rumo e parada no mesmo lugar, Ahh!! os
velhos domingos-asilos de sonhos atrofiados nos tendões rijos das
canelas, com músicas simpáticas em coretos coloniais e cervejas borbulhantes em
copos de plástico e a cara parada e a cara amarela, pessoal, que é “ prá
fotografia parecer antiga” e ‘ estamos todos bem e vivos tia qualquer coisa (
Esperança?! ) que mora longe no interior numa fazendinha com pesadas janelas de
cedro 1915 – daquelas sólidas !! – e vacas preguiçosas mastigando o capim da
paciência do Tempo.
Vagabundos encolerizados brigando com suas sombras fugidias atravessam
cambaleantes a grande visão da noite urbana e agitam suas canecas de lata e
escarram e xingam e vociferam e puxam seus canivetes enferrujados – “Qualé meu
chapa, ae?”-- a lua é um reflexo turvo no vidro do trigésimo andar, silenciosos
trêmulos e castos anjos vagabundos de encovados tristes olhos verdadeiros e
límpidos voam a um palmo do chão
procurando bitas de cigarros nas calçadas sujas e rachadas e caminhando solitário
pela madrugada abandonada você pode e é capaz de topar com um desses querubins
quebrantados e de repente ao olhar seus olhos macilentos todo o mistério estupendo do por que Fomos Todos Expulsos Do Paraíso ?!! ( e eu
que nem nunca estive lá!! ) se revela tão desinteressante e óbvio e tardia e
tediosamente que se é forçado a entrar na primeira espelunca aberta que se
encontra e tragar algo qualquer mais potente enquanto insólitos poetas
estrábicos pela embriaguez escrevem loucos poemas épicos sobre o nevoeiro
cinzento da mente nas portas e paredes descascadas do banheiro, todos os
banheiros de todos os bares do mundo.
Velhos vagabundos aposentados que não fazem mais do que continuar
vagabundeando sentados em alguma soleira de porta emprestada picando fumo e
lendo – só olhando – jornais antigos e surreais, e, é claro, o enorme cão
pardacento vagabundo que me acompanhou por milhões de quilômetros numa estrada
imemorial e com o qual dividi afortunadamente a janta numa fogueira ritual na
floresta, o que nos tornou irmãos para todo o sempre, Amém! Vagabundos astecas
acocorados na Terra Sagrada enrolando grossos baseados na palha de milho olham
o mar profético perdidamente... Um vagabundo ancestral inaugurou a primeira
estrada do mundo – antes das cerimônias oficiais e homenagens aos monarcas de
plantão – ele já ia distante com seu saco de viagem amarrado às costas com
tiras de couro e alguma beberagem mística e estranha e forte na garganta,
enquanto velhos vagabundos gregos procuravam o átomo; Guevara vagabundeando com
seu amigo engraçado numa moto depois a pé pelos caminhos duros da “Maiúscula
América” fervilhante de ingredientes para a Grande Revolução; vagabundos
carcomidos puxando suas carroças feitas com carcaças de geladeiras e rodas de
bicicletas pelas ruas estúpidas e cruéis e bebendo cachaça nos becos sempre à
espera do Apocalipse matinal; vagabundos nos calçadões tentando descolar “um
qualquer prá inteirar a passagem, moça” ; um vagabundo louco que escrevia sobre
outros vagabundos loucos; vagabundos iluminados subindo montanhas de mil metros
para sentarem no topo com os pés balançando no Vazio da Eternidade Seqüencial e
simplesmente não pensarem em nada além de nada e mais nada imersos na brandura
que quem mais saberá?!
Um legítimo vagabundo não tem pátria nem
casa, ele pertence a todos os lugares e à nenhum , flutua nas asas das
circunstâncias e às vezes nem lembra seu nome, então inventa outro –“ Nobre
cavaleiro sem cavalo da Ordem dos Vagabundos Errantes a partir desse dia que
ninguém lembrará será para sempre chamado de O-que-anda-a-pé-pelas-estradas que
vão para lugar nenhum e quem se interessa mesmo, pouco importa, tanto faz,
agora por favor garoto passa prá cá esse bule de café fumegante pra que eu
possa dar um trago e começar a lhe contar sobre como eu e um outro maluco fomos
parar numa Kombi cheia de índios de pileque e de olhos faiscantes que queriam
ir até a próxima cidade conseguir mais álcool e “roupas de branco” e de quando
garimpei diamantes nos rios escuros cor de chá-mate da Chapada Diamantina – te
juro que ainda hoje vejo a cor do fundo desses rios pouco antes de dormir!!” –
e você nem sonhava ainda em despencar nesse mundo doido e estar aqui agora
enquanto eu aperto essa erva potente que um surfista australiano que conheci em
Recife trouxe do incrível México da Serpente Emplumada e do peiote...” – Um
velho andarilho com sua misteriosa e
esfarrapada mochila de veterano – “Eu ando por aí desde o começo do mundo!!”- e
a testa larga e dura e franzida como a dos profetas vagabundos do deserto que
comiam gafanhotos e mel e que antecederam o Grande Vagabundo gentil e Genial do
qual pouca gente sabe qualquer coisa até hoje!! Vagabundos catadores de
cogumelos que parecem surgir nos pastos junto com os cogumelos, brotando depois
das chuvas; o vagabundo com um violão não pode ser esquecido, é a síntese
andarilha de todas as especulações-arquétipos-filosóficas sobre vagabundagem, o
único tipo de vagabundo que nunca está só, porque ele tem um violão, mas às
vezes, ele o perde em bebedeiras e então ele se torna o vagabundo mais triste
do mundo, como Carlitos; vagabundos malucos de estrada “mangueando” rango e
carona em postos de gasolina-restaurantes de caminhoneiros, vagando de cidade
em cidade pelos calçadões e praças e praias e bares e todos os lugares com
pulseiras e colares e canções e anéis e histórias loucas respingando de suas
roupas sofridas e do brilho vibrante dos seus olhos; jovens doidos mochileiros
com barbas longas e duras chamuscadas de sol e fumo lançando-se nas fronteiras
de si mesmos e nas pegadas milenares do andarilho eterno que criou esse mundo e
Tudo e que somos nós mesmos.