sábado, 2 de setembro de 2017

De volta para a estrada


Uma carona o deixa ali
numa velha esquina conhecida
Você anda pelas ruas em que cresceu
leva apenas sua vida, uma mochila e uns trocados amassados no bolso
Esteve longe demais todo esse tempo
para estar aqui agora e sentir-se presente
Quantos edifícios de certezas ruíram
quantas avenidas de dúvidas eram becos
a velha escola onde nunca se aprendeu nada
continua lá
pasteurizando infâncias
enquanto o mar brilha solitário lá fora
seu olhar de passagem pela janela verá talvez
os mesmos professores e alunos
na poeira do século passado
e a sua cadeira vazia
Seus navios adolescentes afundados
e nenhum resto de naufrágio veio à tona
de sua ausência
Você vai pagar um café de inverno cinza
e olha a cara monótona detrás do balcão e poderia ser a sua
fica olhando a rua da perspectiva de uma mesa
plantada no mesmo lugar da primeira cerveja
Andando por essas calçadas
cheias de gente, mas desertas
com seu casaco estradeiro
Não vai adiantar mais tocar aquela música
esquecida
rebuscar na memória os nomes que não dizem mais nada
além do vazio
escrito nas janelas abertas, nos muros
nas pontes queimando atrás dos passos inebriantes
que o levaram para as estradas
onde seus olhos ficaram muito tempo
além de si mesmo e não souberam voltar
e deparar-se com a velha cidade dormindo à beira mar
os amigos de infância estão todos sérios e pacatos
apascentando suas existências em praças plácidas e
empregos banais
enquanto você esticava o dedo na beira de estradas estranhas e longínquas
e sentava-se à espera de caronas
para a eternidade  e escrevia tudo alucinadamente
inspirado por partículas sujas de Jack Kerouac na mochila rasgada e
cheia de sonhos e visões em cadernos universitários empoeirados
Sua namorada casou-se com o dono da loja de ferramentas?!
E balança pesadamente em frente a uma pia atulhada
todas as manhãs
enquanto suas crianças correm pela casa com o cachorro
Seus cemitérios estão no mesmo endereço
ou leva-os amarrados aos cadarços das botas?!
Você entra num bar qualquer
e todos os bêbados têm a mesma cara de antigamente
mas são os filhos
e dizem as mesmas tolices acreditáveis somente
por eles mesmos
E você pode ter trinta anos de vida ou de estrada
que afinal dá no mesmo
a cidade cresce mas é só em números
e ninguém sabe porque morre
nem porque está vivo
Se você andasse por essas ruas como agora anda
escreveria os poemas que não escreveu ainda
jogaria a moeda de 1930 ao cego da esquina
ou a pedra de sarcasmo no vidro da igreja
espiaria a partida de futebol
que acontece há setenta e cinco anos
interminavelmente
baniria os domingos programados
e nadaria até a ilha dos seres pensantes
desabitada e assombrada e fundaria um país solitário?
Não, você só esta de passagem
esteve longe demais para se preocupar
com a previsão do tempo, a nova lei de transito,
as últimas apreensões de entorpecentes,
os empréstimos infalíveis, o resultado da loteria, a eleição, a missa
a moeda que caiu no bueiro
De repente alguém pensa que o reconhece na rua
ali parado em frente a loja de instrumentos musicais
olhando pelo vidro embaçado a garota ruiva de boina verde tocando violão
ela o vê pelo vidro e acena
enquanto você tenta ouvir o que ela toca
e tenta se desvencilhar do sujeito que pensa que o conhece
na garoa
e dispara a falar
(“Like a roling stone” ela toca? !)
e começa a contar os destinos de cada um de seus velhos amigos,
e que não vão além da esquina,
o comerciante, o advogado, o empresário,
o que ficou louco, esse até desperta algum interesse,
o vereador, o funcionário público, o policial, o pastor...
Em que categoria lhe enquadrariam, andarilho, aventureiro?!
Vagabundo, com certeza!
Os que morreram, os que casaram,
os que ainda andam por aí
sem nem saber se andam mesmo
A garota ruiva toca outra canção e olha
pela vidraça do tempo
mas você já não está lá
nem em lugar nenhum e
a canção ecoa nos muros e ruas vazias
enquanto o sujeito que você nem lembra quem é
continua a falar sem parar
e sua voz esvanece como névoa e ele também
Você boceja como quem ouve um padre
e dorme andando de tédio
na pequena chuva que cai desde
o século passado
acorda quando chega na rodoviária
embarca num ônibus prá qualquer lugar nenhum de novo
e abre um livro