quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Vagabundos iluminados

       
     
      ...Mas sempre viajei... Tenho a sensação estranha de estar viajando desde sempre, há séculos, de ter sido um viajante qualquer numa época em que as viagens eram feitas a pé e duravam anos e ninguém sabia para onde. A figura do vagabundo errante, clássica, mítica, caminhando calmamente através das épocas e cidades com sua roupa puída e heróica, verdadeiro revolucionário do abandono, da renúncia, de tudo e de si mesmo e de qualquer perspectiva de qualquer coisa, o anti-herói, na verdade, o  desleixado e desinteressado ( e quase sempre bêbado ) caminhante noturno que às vezes esbarra sua aparição cinzenta e cética nos ombros dos paletós tensos de sujeitos que passam longamente prá lá e prá cá pelas calçadas irregulares durante dez, vinte, trinta anos de suas vidas e sem saber realmente para quê, e só conhecem nada mais do que essas velhas calçadas cansadas quando olham para a frente e vêem apenas uma cidade esburacada crescendo sob seus pés para todas as direções, enquanto os cabelos vão debandando uma a um, fielmente. Talvez eu tenha sido mesmo um vagabundo de 1940 com uma miraculosa garrafa de vinho que nunca seca, um cigarro pisoteado e um sobretudo amarrotado e que foi visto perambulando sem nome em domingos lentos e chuvosos de inverno trinta anos depois em Buenos Aires e em Lima e em Istambul e em um porto fantástico no pacífico e encostado suspeitosamente numa parede de bar na Lapa, e trinta anos depois numa estradinha de terra de qualquer lugar com uma mochila de lona verde e um caminhar sem pressa e sonolento e será visto ainda daqui a trinta anos adentrando cidades com sua capa inconfundível de poeira e sua aura de náufrago do tempo, perdido aventureiro obscuro andarilhando desde as Montanhas-Budas-gigantescos-de-pedra do Nepal até as entranhas sórdidas de cimento e lata de uma metrópole sulamericana passando através de velhas cidadezinhas descoloridas e pálidas e desenrolando atrás de sí seu interminável carretel de histórias e estradas. Um vagabundo original nunca repete as cidades por onde passa e num país desse tamanho você pode andar por uns vinte anos sem nunca precisar passar mesmo por um lugar duas vezes- e depois- quando isso acontece você já nem lembra mais (e daí?!) e talvez até pare no mesmo balcão de um bar antigo e peça outra dose para esquentar os músculos para uma caminhada longa de um dia frio. Ratos estradeiros se multiplicam todos os anos e ninguém sabe dizer de onde eles surgem, bandos inteiros de barbudos com pálpebras vermelhas e olhar caído e mole de cão sabujo, vestidos com velhas gandolas desbotadas e botinas come-léguas apontando silenciosas para o poente. E não há como desviar deles nas ruas, você sabe, não há, e baterão em sua porta pedindo algo prá comer – Tem pão? – e o vagabundo pára no meio do nada e com ar solene e vasto e rosto cheio de sol ou de chuva, avalia a distância, respira fundo o silêncio, procura talvez um cigarro nos mil bolsos furados e caminha para seu destino que não é nem mesmo destino algum e ele sabe e toca seu passo rumo ao próximo qualquer coisa que esteja lá à frente.  Certeza?! Não, nenhuma, só a das horas fuzilando gente. E, depois, que um homem passe sua vida preferindo andar sem rumo deveria ser algo menos estranho e perigoso de que escolher passar uma vida sem rumo e parada no mesmo lugar, Ahh!! os  velhos domingos-asilos de sonhos atrofiados nos tendões rijos das canelas, com músicas simpáticas em coretos coloniais e cervejas borbulhantes em copos de plástico e a cara parada e a cara amarela, pessoal, que é “ prá fotografia parecer antiga” e ‘ estamos todos bem e vivos tia qualquer coisa ( Esperança?! ) que mora longe no interior numa fazendinha com pesadas janelas de cedro 1915 – daquelas sólidas !! – e vacas preguiçosas mastigando o capim da paciência do Tempo.
      Vagabundos encolerizados brigando com suas sombras fugidias atravessam cambaleantes a grande visão da noite urbana e agitam suas canecas de lata e escarram e xingam e vociferam e puxam seus canivetes enferrujados – “Qualé meu chapa, ae?”-- a lua é um reflexo turvo no vidro do trigésimo andar, silenciosos trêmulos e castos anjos vagabundos de encovados tristes olhos verdadeiros e límpidos voam a um palmo  do chão procurando bitas de cigarros nas calçadas sujas e rachadas e caminhando solitário pela madrugada abandonada você pode e é capaz de topar com um desses querubins quebrantados e de repente ao olhar seus olhos macilentos  todo o mistério estupendo do por que  Fomos Todos Expulsos Do Paraíso ?!! ( e eu que nem nunca estive lá!! ) se revela tão desinteressante e óbvio e tardia e tediosamente que se é forçado a entrar na primeira espelunca aberta que se encontra e tragar algo qualquer mais potente enquanto insólitos poetas estrábicos pela embriaguez escrevem loucos poemas épicos sobre o nevoeiro cinzento da mente nas portas e paredes descascadas do banheiro, todos os banheiros de todos os bares do mundo.
      Velhos vagabundos aposentados que não fazem mais do que continuar vagabundeando sentados em alguma soleira de porta emprestada picando fumo e lendo – só olhando – jornais antigos e surreais, e, é claro, o enorme cão pardacento vagabundo que me acompanhou por milhões de quilômetros numa estrada imemorial e com o qual dividi afortunadamente a janta numa fogueira ritual na floresta, o que nos tornou irmãos para todo o sempre, Amém! Vagabundos astecas acocorados na Terra Sagrada enrolando grossos baseados na palha de milho olham o mar profético perdidamente... Um vagabundo ancestral inaugurou a primeira estrada do mundo – antes das cerimônias oficiais e homenagens aos monarcas de plantão – ele já ia distante com seu saco de viagem amarrado às costas com tiras de couro e alguma beberagem mística e estranha e forte na garganta, enquanto velhos vagabundos gregos procuravam o átomo; Guevara vagabundeando com seu amigo engraçado numa moto depois a pé pelos caminhos duros da “Maiúscula América” fervilhante de ingredientes para a Grande Revolução; vagabundos carcomidos puxando suas carroças feitas com carcaças de geladeiras e rodas de bicicletas pelas ruas estúpidas e cruéis e bebendo cachaça nos becos sempre à espera do Apocalipse matinal; vagabundos nos calçadões tentando descolar “um qualquer prá inteirar a passagem, moça” ; um vagabundo louco que escrevia sobre outros vagabundos loucos; vagabundos iluminados subindo montanhas de mil metros para sentarem no topo com os pés balançando no Vazio da Eternidade Seqüencial e simplesmente não pensarem em nada além de nada e mais nada imersos na brandura que quem mais saberá?!
      Um legítimo vagabundo não tem pátria nem casa, ele pertence a todos os lugares e à nenhum , flutua nas asas das circunstâncias e às vezes nem lembra seu nome, então inventa outro –“ Nobre cavaleiro sem cavalo da Ordem dos Vagabundos Errantes a partir desse dia que ninguém lembrará será para sempre chamado de O-que-anda-a-pé-pelas-estradas que vão para lugar nenhum e quem se interessa mesmo, pouco importa, tanto faz, agora por favor garoto passa prá cá esse bule de café fumegante pra que eu possa dar um trago e começar a lhe contar sobre como eu e um outro maluco fomos parar numa Kombi cheia de índios de pileque e de olhos faiscantes que queriam ir até a próxima cidade conseguir mais álcool e “roupas de branco” e de quando garimpei diamantes nos rios escuros cor de chá-mate da Chapada Diamantina – te juro que ainda hoje vejo a cor do fundo desses rios pouco antes de dormir!!” – e você nem sonhava ainda em despencar nesse mundo doido e estar aqui agora enquanto eu aperto essa erva potente que um surfista australiano que conheci em Recife trouxe do incrível México da Serpente Emplumada e do peiote...” – Um velho andarilho com sua    misteriosa e esfarrapada mochila de veterano – “Eu ando por aí desde o começo do mundo!!”- e a testa larga e dura e franzida como a dos profetas vagabundos do deserto que comiam gafanhotos e mel e que antecederam o Grande Vagabundo gentil e Genial do qual pouca gente sabe qualquer coisa até hoje!! Vagabundos catadores de cogumelos que parecem surgir nos pastos junto com os cogumelos, brotando depois das chuvas; o vagabundo com um violão não pode ser esquecido, é a síntese andarilha de todas as especulações-arquétipos-filosóficas sobre vagabundagem, o único tipo de vagabundo que nunca está só, porque ele tem um violão, mas às vezes, ele o perde em bebedeiras e então ele se torna o vagabundo mais triste do mundo, como Carlitos; vagabundos malucos de estrada “mangueando” rango e carona em postos de gasolina-restaurantes de caminhoneiros, vagando de cidade em cidade pelos calçadões e praças e praias e bares e todos os lugares com pulseiras e colares e canções e anéis e histórias loucas respingando de suas roupas sofridas e do brilho vibrante dos seus olhos; jovens doidos mochileiros com barbas longas e duras chamuscadas de sol e fumo lançando-se nas fronteiras de si mesmos e nas pegadas milenares do andarilho eterno que criou esse mundo e Tudo e que somos nós mesmos.

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